sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Dia 6 - Alguém da minha infância

"I hate that sadness in your eyes."

Minha mãe tem como uma das (infinitas) máculas da minha educação infantil o fato de não ter conseguido me convencer a chamar os mais velhos de senhor e senhora. Criatura insuportável desde sempre, nas lembranças mais antigas me vejo tendo problemas com ritos e autoridades pré-estabelecidas. Tanto o meu respeito quanto a minha obediência dependiam de que os adultos tivessem o saco de explicar em pormenores por que eu precisava agir de determinado modo. O questionamento incessante pode até ser sinal de inteligência numa criança, mas o meu ultrapassava os limites do suportável e, na certeza de que aqui se faz, aqui se paga, reitero minha decisão de não procriar sob pena de que a genética iniludível me confronte com uma pequena versão de mim e eu a afogue na privada.

Acontece que você eu chamava de senhora (e já não chamo, porque aprender não é meu forte) quando minha mãe já havia desistido de me incutir o hábito. O respeito foi quase imediato, pois nem sua rabugice nem sua falta de tato com crianças conseguiram enganar um faro que sempre me foi apurado: o de descobrir boas essências, mesmo quando as impressões fossem contrárias.

Você era pequena e esquelética, sua pele era queimada daquele sol maldito da serra e a única coisa que chamava a atenção eram seus olhos: enormes no rosto encovado, espantosamente verdes. Conversar com você era uma desculpa para ficar observando o absurdo da cor daqueles olhos que, fossem meus, me fariam passar horas na frente do espelho.

Seus olhos eram tristes, mas ao contrário de todo o resto de você, também eram altivos. Algo do meu respeito por você era pena dos vestidos velhos, dos lábios sem carne e de, tão velha, você precisar trabalhar limpando a casa dos outros e sentir esse dó me causava vergonha. Porque a despeito de ser uma velha raquítica, você trabalhava com afinco que denunciava uma força vinda do desconhecido, uma força repleta duma dignidade inquebrantável, que eximia quem quer que fosse de sentir pena. Essa força e sua serenidade me ganharam e o respeito fazia com que eu me envergonhasse de ter dó: não é correto se penalizar de quem não sente pena de si mesmo.

Essas idéias eram pequenas e esparsas na minha cabeça de criança e tudo o que eu podia fazer, em razão do meu respeito, era procurar ser menos atentada. Foi, então, uma era de relativa paz a época em que você trabalhou na minha casa, se excetuarmos o episódio em que eu tentei fazer a maior bolha do mundo com um cano de PVC e me intoxiquei com detergente.

Espero que você esteja bem.

P.S.: Valeu por não contar pra minha mãe sobre aquela vez em que eu te roubei um cigarro e quase asfixiei tentando tragar. Não sei se a omissão foi pra salvar a sua pele ou a minha, mas obrigada assim mesmo.

P.P.S.: Pensando agora, acho que meu plano de ser menos atentada não foi bem-sucedido.

6 comentários:

Jey disse...

akemi disse...

óun. :~

Brenda disse...


Pessoas assim nos ensinam mais do que nós mesmos imaginamos.

Cláudia Isabele disse...

Há algo de esplêndido em confrontar as lembranças com tamanha sinceridade.


Parabéns!

João disse...

Você consegue usar uma palavra como iniludível num texto que soa bonito e singelo e não pretensioso, como todo mundo tenha usar iniludível acaba soando.

Diee Diee Teodoro disse...

Desobediência civil!

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